quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Posição da CNTE sobre o Pronatec

Os riscos do Pronatec para a educação técnica profissional


 

Em 29 de abril de 2011, o Governo Federal enviou ao Congresso Nacional, em regime de urgência, a proposta que visa instituir o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – Pronatec.


 

A primeira fase de tramitação da matéria encerrou-se em 31 de agosto, quando a Câmara dos Deputados aprovou o Substitutivo ao Projeto de Lei (PL) nº 1.209/2011. A este foram agregadas emendas, a exemplo da que estende as bolsas de estudos para estudantes de cursos técnicos profissionalizantes e seqüenciais de formação específica, matriculados em instituições privadas de ensino profissional, com ou sem fins lucrativos (prevista no PL nº 1.288/2011), e a que condiciona a liberação das parcelas do seguro-desemprego à comprovação de frequência a curso de qualificação profissional (PL nº 1.343/2011). A proposta, agora, segue para apreciação do Senado.


 

Para a CNTE e grande parte das entidades educacionais e de representantes de trabalhadores, excluídas do debate oficial na esfera de governo e na Câmara dos Deputados, a estrutura do Pronatec ameaça o conceito e os pressupostos da educação técnica profissional de nível médio, consolidados, sobretudo, pelo Decreto nº 5.154, de 2004, e pela Lei nº 11.741, de 2008, em consonância com o Fundo da Educação Básica (Fundeb) e a Emenda Constitucional (EC) nº 59, sob os seguintes aspectos:


 

  1. Não dimensiona o papel do Estado na oferta pública e gratuita de educação profissional técnica de nível médio


 

À luz da Constituição Federal (art. 208, I), o Poder Público é responsável pela oferta gratuita de ensino médio propedêutico e profissional, sobretudo na modalidade articulada, que se mostra a mais viável para transpor as barreiras que impedem a universalização das matrículas nesta etapa de ensino.


 

Hoje, somente a metade dos jovens entre 15 e 17 anos está matriculada no ensino médio, e a falta de atratividade da escola tem se mostrado a principal causa de evasão e distorção idade-série neste corte etário.

Isso leva a crer que o investimento público, no ensino médio profissional, cumpre papel relevante tanto para a universalização das matrículas como para proporcionar aos jovens – especialmente das camadas populares da cidade e do campo – a oportunidade de obterem qualificação para ingresso no mundo do trabalho, como empregados ou empreendedores.


 

O déficit de mão de obra qualificada a que o país atravessa – fruto do descaso de décadas com a formação de qualidade do trabalhador – não deve ser tratado ao estilo de uma operação "tapa-buraco" e sem o devido compromisso público. Se assim for, corre-se o risco de repetir desempenhos pífios e de desperdiçar dinheiro público.


 

Neste sentido, caberia ao Pronatec, especialmente em seus incisos I, II e VI do art. 4º do PL 1.209/2011, dimensionar os objetivos da EC nº 59, aliando-os à perspectiva de uma educação sólida com metas previstas no Plano Nacional de Educação. E para que o Estado zele pelo direito à educação pública, gratuita, de qualidade e para todos/as, é preciso saber em quantas unidades será expandida a rede federal de educação profissional e tecnológica ao longo da década? Quanto de recursos da União será destinado à expansão das redes estaduais de educação profissional? Quantos estudantes terão acesso a essas redes públicas até o fim do próximo PNE? E qual a matriz pedagógica da formação?


 

O não dimensionamento e a (re)orientação dessas questões-chaves, na proposta do Pronatec, tendem conduzir a educação técnica e tecnológica a outras graves conseqüências, a exemplo das que se seguem neste documento.


 

  1. Flexibiliza o compromisso do Estado para com a oferta da educação técnica de nível médio e estimula a reserva de mercado educacional


 

O projeto de Pronatec – aprovado na Câmara – carrega consigo duas características que colidem com o recente cenário de expansão do direito à educação básica (pública e gratuita) no Brasil. Ao mesmo tempo em que cria mercado para empresas educacionais, também prevê onerar o estudante que não teve acesso ao ensino básico de qualidade, direcionando-lhe para o ingresso no FIES-Técnico/Profissional (programa de financiamento estudantil do governo federal). Outro contra-senso refere-se à desoneração de impostos empresariais para cursos de qualificação profissional de mínima duração (160 horas), que não apresentam nenhuma perspectiva de atendimento dos requisitos de qualidade da educação (art. 205 e seguintes da Constituição).


 

Outra distorção do Pronatec consiste na instauração do Prouni-Técnico/Tecnológico, onde instituições privadas de ensino se credenciarão para ministrar cursos concomitantes ao ensino médio. Embora esta modalidade tenha previsão legal, não é o que se espera do Poder Público, que pode e deve ampliar, continuamente, os cursos integrados de ensino médio à formação técnico-profissional (LDB, art. 36-C, I).


 

Quanto à bolsa-formação trabalhador, em se mantendo a perspectiva de sua concessão às instituições privadas, a medida deveria, ao menos, prever caráter emergencial e de calibração temporal, a fim de que os benefícios à iniciativa privada cessem no momento em que o poder público adequar sua oferta de matrículas à demanda social – com base nas metas do PNE.


 

  1. Contrapõe o recente acordo de expansão de matrículas gratuitas em âmbito do Sistema S


 

A proposta do Executivo (e da Câmara) tende a contradizer o acordo selado, em 2008, com os serviços nacionais de aprendizagem (Sistema S), que previu a concessão de vagas gratuitas nessas instituições, até 2014, nas seguintes proporções: Senai e Senac: 2/3 de vagas gratuitas sobre o total das ofertadas e; Sesc e Sesi: 1/3 de vagas gratuitas.


 

Como o Pronatec prevê a possibilidade dessas entidades receberem recursos públicos provenientes da bolsa-formação trabalhador (art. 4º, IV do PL 1.209/2011), o objetivo do acordo não deve se concretizar, podendo, ainda, as novas fontes federais sobreporem não apenas os custos com as mencionadas vagas gratuitas, como também significarem acréscimo na receita líquida do Sistema S. Ou seja: a conta pode ficar pior que a troca de seis por meia dúzia! Pois, ao que tudo indica, a concessão de bolsas visa compensar as perdas financeiras com as vagas gratuitas que o sistema terá de arcar, com mais peso, a partir de 2014.


 

Eximir essas instituições da assinatura de contrato para recebimento de novas verbas via Pronatec (art. 6º do PL 1.209/2011), não parece algo salutar. Ao contrário: deveriam ser estabelecidos critérios para aplicação dos cerca de R$ 11 bilhões arrecadados anualmente pelo Sistema S, que somados às receitas de aplicações financeiras (questionáveis do ponto de vista legal) renderam mais de R$ 16 bilhões às entidades patronais no ano de 2010. Por consequência, a fiscalização desses recursos – que somam o dobro da complementação da União ao Fundeb – é outro tema sensível à deliberação do Congresso, haja vista a dificuldade que os órgãos de controle encontram para executar plenamente a fiscalização dessas verbas públicas.


 

  1. Inibe a expansão de instituições públicas de formação técnica e tecnológica compromissadas com a formação cidadã


 

A CNTE, como a maioria das entidades educacionais, defende a aplicação de recursos públicos exclusivamente em escolas públicas. Isso porque, não obstante a Constituição Federal (art. 213, § 1º) prever a possibilidade de destinação desses recursos para instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos, e somente quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade de residência do educando, fato é que o mesmo texto da Carta Magna obriga o poder público a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade onde há déficit de vagas.


 

Mediante este desígnio, entendemos que o PL 1.288/2011 não deveria ter sido agregado ao Pronatec, uma vez que a Educação Básica já conta com obrigatoriedade gratuita na Constituição, independente de sua oferta constar na modalidade concomitante. Nesse mesmo diapasão, a bolsa-formação estudante prevista no art. 4º, § 1º do PL 1.209/2011, destinada às instituições do Sistema S e a entidades sem fins lucrativos (art. 8º do PL 1.209/2011), deve ser suprimida do projeto, durante a tramitação no Senado, levando-se, ainda, em consideração os argumentos do item 2 deste documento.


 

Assim, um dos caminhos promissores para se equalizar a oferta pública de educação profissional técnica de nível médio, à luz da EC nº 59, pressupõe o aprofundamento do regime de colaboração entres os entes públicos, através de convênios para construção e/ou adaptação das escolas públicas de nível médio-profissional e para a formação profissional de professores e funcionários dessas escolas. Outro mecanismo consiste em incrementar, por meio da parcela de suplementação da União, o fator de distribuição per capita do Fundeb, visando à manutenção e ao desenvolvimento do ensino desta modalidade da educação básica nas redes estaduais.


 


 

  1. Fomenta o reducionismo curricular da formação para o trabalho


 

Embora a educação profissional mantenha vínculo estreito com o mundo do trabalho, o Decreto 5.154, de 2004, e, posteriormente, a Lei 11.741, de 2008, trataram de conceber premissas a essa formação no sentido de articulá-la às áreas da educação, do trabalho e da ciência e tecnologia, em cursos que privilegiassem itinerários formativos, objetivando o desenvolvimento de aptidões dos estudantes/trabalhadores para a vida produtiva e social.


 

Outro objetivo dessa nova concepção da educação profissional – que norteia a LDB – diz respeito à oferta preferencialmente integrada a cursos de educação de jovens e adultos, objetivando a qualificação para o trabalho e a elevação do nível de escolaridade do/a trabalhador/a.


 

Tal como se apresenta o projeto do Pronatec, percebe-se que os eixos dos cursos perpassam, prioritariamente, pela qualificação profissional de curta duração e pela formação técnica-profissional concomitante ao ensino médio, desprezando, portanto, as premissas curriculares e o papel social da formação dos/as trabalhadores/as construídas nos últimos sete anos.


 

O reducionismo curricular atende aos interesses dos agentes produtivos, interessados apenas na qualificação operacional da mão de obra. E para que seus objetivos sejam atingidos com segurança, optaram em direcionar a formação para cursos e instituições privadas com currículos adstritos aos interesses corporativos.


 

Mesmo não alterando a LDB, a proposta original de Pronatec tende a abrir uma nova disputa conceitual sobre os horizontes da formação técnica-profissional de nível médio, o que é bastante temerário para a qualidade dessa modalidade de ensino. E para se evitar esse retrocesso conceitual – conquistado a partir da interação da educação profissional com os objetivos da formação pedagógica –, caberia ao próprio governo, agora em parceria com o Senado, estabelecer parâmetros e outros mecanismos de prazos para a oferta da qualificação requerida pelo empresariado (de cunho emergencial), de modo a evitar que se confundam os objetivos da formação escolar técnica e tecnológica, recentemente construídos com os/as trabalhadores/as e as instituições formadoras.


 

Por óbvio que a qualificação profissional (mesmo operacional), no afã da atualização, da inserção e da promoção do/a trabalhador/a no mundo do trabalho, acaba por atraí-lo para essa modalidade. Mas trata-se de um benefício passageiro, sem raízes e com oportunidades restritas. E diante dessas perspectivas, não convém ampliá-la para além do que é necessário para atender, pontualmente, a demanda reprimida e necessária à manutenção do atual processo de crescimento econômico do país.


 

Em outra ação de governo, o Executivo deveria propor – no bojo do PNE – ações mais bem definidas – como as que se mostram no Pronatec – a fim de promover a educação profissional sob os desígnios do art. 205 da Constituição, quais sejam: visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, conferindo maior robustez ao processo de desenvolvimento inclusivo e sustentável do Brasil.


 

  1. Condiciona o trabalhador, assistido por seguro-desemprego, a vínculo empregatício sem direito de escolha


 

Além de propor formas de financiamento público para a educação profissional e tecnológica, o Pronatec também altera as legislações do programa do seguro-desemprego e da seguridade social. E, reforçando a proposta do Executivo, o PL 1.343/2011 – recepcionado em votação na Câmara – condiciona a liberação das parcelas do seguro-desemprego à comprovação de frequência a cursos de qualificação profissional.


 

Já o dispositivo que prevê o cancelamento de assistência ao trabalhador desempregado em razão de recusa, por parte deste, de outro emprego condizente com sua qualificação e remuneração anterior (art. 14 do PL 1.209/2011), tolhe o direito do/a trabalhador/a em avaliar as condições que envolvem a sua relação de emprego, o que é arbitrário e altamente questionável na seara trabalhista.


 

Em suma: além das questões conceituais, também pairam muitas incertezas do ponto de vista jurídico na proposta do Pronatec. E esperamos que o Senado, ao contrário do que fez a Câmara dos Deputados, promova um amplo debate com os setores envolvidos nesta importante política pública, a fim de melhorar o projeto.

Brasília, 1º de setembro de 2011

Diretoria Executiva da CNTE

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